Cuidando das relações familiares e comunitárias: História do Instituto Noos.
Em 1992, Carlos Eduardo Zuma e Jorge Bergallo, psicólogos, André Souza Rego e Helena Julia Monte, psiquiatras, formalizaram os trabalhos que vinham fazendo juntos na área de atendimento a famílias, no Rio de Janeiro, constituindo o Instituto Noos.
Em 2015, vinte e três anos depois, Carlos e Jorge, que continuavam como gestores do Noos, foram entrevistados por Emerson Rasera Jr. A entrevista foi publicada no número 50 da revista Nova Perspectiva Sistêmica com o título Cuidando das relações familiares e comunitárias: notas sobre a história do Instituto Noos, contando o início dessa história e os principais pontos do percurso, que resumimos aqui.
“Nós quatro, Carlos, André, Helena e Jorge, fomos da turma 1988 do curso de formação em terapia de casal e família do Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro (ITF-RJ).Quando começamos a preparar os trabalhos de conclusão de curso, nos juntamos, pois estávamos interessados num mesmo tema: entender quais eram as repercussões clínicas dos conceitos vindos da cibernética de segunda ordem, do construtivismo, que estavam chegando ao campo da terapia de família naquele momento. Chegando ao final do curso, tínhamos o TCC (trabalho de conclusão de curso) pronto e também a vontade de formalizar o grupo em uma instituição.
Em nossa formação atendíamos em dupla, com um aluno no campo com a família e a sua dupla e o restante da equipe atrás do espelho unidirecional, junto com a supervisora, seguindo o formato da Escola de Milão. Um momento teve particular importância nesse processo. Em uma determinada sessão de um atendimento quando o Carlos, que estava atuando como terapeuta de campo, saiu para ouvir a equipe, a conversa não conseguia produzir nenhuma ideia minimamente compartilhada que pudesse ser levada para a continuidade da sessão com a família. Cada um apontava para uma direção. “Aí um de nós perguntou: por que não entramos lá, conversamos na frente da família, cada um apresentando seu ponto de vista?” E isso foi um marco porque nós nunca tínhamos ouvido falar em Tom Andersen.
Pouco tempo depois, a supervisora da equipe, Teresa Cristina Chagas Diniz, foi a um congresso nos Estados Unidos, em 1991, e trouxe um livro do Tom Andersen, que tinha acabado de ser lançado. Ela voltou entusiasmada com a constatação de que a experiência de atendimento que havíamos vivenciado cabia no que Tom Andersen experimentara com sua equipe no departamento de psiquiatria da Universidade de Tromso, Noruega, a partir de 1985, nomeada por ele como Equipe Reflexiva, descrita e fundamentada no livro. Foi uma descoberta muito forte para todos nós que éramos muito exigentes com a coerência dos conceitos com que pretendíamos fundamentar nossa prática. Esse exercício constante de associar rigor conceitual e coerência com nossa prática clínica criou uma afinidade muito grande entre nós. Por essa afinidade, após o término da formação, os quatro continuaram atendendo juntos e se constituíram, em seguida, como uma equipe de consultoria clínica. E foi nessa época que o Carlos veio com a ideia de levarem a visão sistêmica para além dos consultórios.
Por diferentes caminhos, os quatro fundadores desenvolveram uma preocupação social. Carlos tinha tido uma vivência política durante a faculdade – no finalzinho da ditadura militar – participando de um partido clandestino. Não pegou em armas mas colaborava colando cartazes contra a ditadura e fugindo da polícia quando ela aparecia para reprimir a colagem. Tinha uma motivação de contribuir para uma mudança política, uma mudança social. Naquela época, a psicanálise era o discurso dominante na área da psicoterapia. Ao mesmo tempo em que fazia formação psicanalítica e se submetia a sessões de psicanálise, tinha críticas ao método e prática decorrentes da teoria psicanalítica, pois achava que a psicanálise fortalecia muito o individualismo e aquilo não o satisfazia. E também por ter trabalhado muito tempo com pacientes graves, começando aos 18 anos, como estagiário em um hospital psiquiátrico onde montou um grupo de acompanhamento domiciliar para pacientes graves. Durante oito anos, fez esse trabalho de acompanhar pacientes graves na casa deles. Essa experiência gerou o interesse pela área da família. Ter contato com a teoria sistêmica foi uma abertura de perspectivas muito grande que o fez pensar: Está aqui a resposta para o que eu procuro há tanto tempo, em que posso me basear para entender essa complexidade toda: que temos uma vida interior, uma vida relacional e uma vida sociopolítica também, e que é difícil delimitar fronteiras entre elas. A busca era para ter uma leitura que englobasse tudo isso e que gerasse sentido de alguma maneira.
Jorge conta seu percurso até a terapia familiar a partir de uma trajetória profissional pouco convencional. Com formação anterior em Engenharia, vinha trabalhando nessa área por seis anos mas isto não o satisfazia. Na busca de alternativas para essa insatisfação, tinha como importante referência uma experiência vivida durante a adolescência e até os 20 anos de idade, quando participara como coordenador de colônias de férias para crianças. Seu maior interesse era aceitar o desafio de encontrar formas de incluir os “menos enturmados”. Nessa busca percebeu que muitas leituras que o interessavam eram exatamente da área da Psicologia. Assim, oito anos depois de ter ingressado na Engenharia, retornou à Universidade para fazer o curso de Psicologia. Reaproximando-se da experiência enriquecedora e prazerosa das colônias de férias, fez o estágio na área clínica, participando de uma equipe para atendimentos de crianças. Depois de formado, já atendendo em consultório, passou pela frustração de, no meio de um trabalho em que paciente e terapeuta avaliavam que o processo estava provocando transformações positivas, os pais retiravam a criança ou adolescente da terapia. Começou a se indagar, naquele momento, em como superar a questão de trabalhar com crianças que não decidem quando entrar e quando sair da terapia. Nessa época, entra na primeira turma de formação do ITF em 1988, buscando justamente ampliar esse olhar para a família e para a questão do contexto social. O que o aproximava da questão social não era especificamente o viés político, mas sua formação religiosa. Foram valores familiares que o levaram, a partir dos 16 anos, a práticas como a de ler para cegos, dar aula na Favela da Rocinha, experiências que permitiram vivenciar histórias incríveis de transformação. O encontro com o pensamento sistêmico foi uma vivência muito libertária, muito ampliadora.
Carlos relata outro fato desse período, que precipitou o processo de fundação do Noos - a revista Nova Perspectiva Sistêmica. A revista foi um projeto de Gladis Brun, uma das fundadoras do ITF. 'Eu comecei a trabalhar na produção da revista a partir do seu terceiro número, auxiliando Lia Carvalho, a produtora da revista na época. Quando nos formamos no ITF, a revista estava para ser encerrada. Aí pensamos: queremos levar esse projeto adiante, a revista é super importante'*. Passar a produzir a revista fez com que nós apressássemos mais a formalização da instituição.
Perguntados sobre o que destacariam como os principais momentos da história do Noos, Jorge acha difícil destacar momentos específicos, mas ressalta que o Noos estar completando 20 anos não se deve aos quatro, mas ao fato de várias pessoas terem se juntado a eles ao longo desse período. Além do papel aglutinador e empreendedor desempenhado por Carlos, o tempo todo à frente da instituição como Secretário Executivo, o crescimento e fortalecimento do Noos não teria sido possível sem a chegada dessas outras pessoas.
Carlos destaca como um marco, em muitos sentidos o momento em que lançaram o livro de Rosana Rapizo (Terapia Sistêmica de Família – da instrução à construção), em 1996: saíram da publicação de um só produto, a revista, e passaram à publicação de um livro. Foi um marco também pela forma como isso foi feito. Rosana tinha terminado o mestrado, queria publicar o livro e não tinha recursos. O grupo também gostaria de publicar o livro da Rosana, tinha conhecimento editorial, mas não tínha recursos. Resolveram fazer uma venda antecipada do livro, ou seja, a famosa vaquinha, o atual crowdfunding. Considera outro marco a mudança para uma casa na Rua Martins Ferreira, no bairro de Botafogo, em 1997. Isso fez grande diferença, porque até então eles não tínham consultório juntos, no mesmo local, e foi um marco porque reuniu, colocou-os fisicamente juntos num mesmo espaço e atraiu outras pessoas para um espaço próprio.
Naquele momento, também decidiram trabalhar com questões de gênero e isso foi outro marco para o Noos. O trabalho com homens que começaram a fazer trouxe um diferencial muito grande, chamou muito a atenção para o Noos. Conseguiram o primeiro financiamento governamental, pelo Ministério da Justiça, a partir desse trabalho com os homens autores de violência. E um outro momento decisivo foi o convênio com a Fundação para a Infância e Adolescência. Foi uma experiência enorme, em primeiro lugar porque foram os responsáveis pela abertura dos núcleos especializados de atenção a crianças e adolescentes no Estado para dar apoio técnico aos Conselhos Tutelares nos casos de violência contra crianças e adolescentes – em especial, nos casos de abuso sexual. Foi um projeto que preparou o Noos para ações de maior complexidade em termos de execução de projetos.
Carlos aponta ainda a sua entrada para a Ashoka, quando foi selecionado como Empreendedor Social por esta organização internacional, muito reconhecida no meio do terceiro setor; ter passado por essa seleção na Ashoka abriu muitas portas. E também o 123Alô!, projeto implementado em 2009 e que trouxe muita visibilidade ao Noos. É um serviço de interação direta com crianças e adolescentes por meio de telefone, e-mail ou chat, uma ferramenta para viabilizar o exercício do direito das crianças e adolescentes de serem escutadas e de terem participação, direitos previstos na Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças. Esse serviço existe em 143 países e o Noos foi convidado a integrar a rede internacional que congrega esses serviços em todo o mundo, que é a Child Helpline International.
Jorge relembra outro momento, em 1998, em que foram convidados a dar uma formação de três anos em terapia de família fora do Rio de Janeiro, em Macaé. Um sábado por mês, viajavam 400 km para dar aula lá. Foram trinta idas para Macaé que proporcionaram uma vivência de equipe muito forte. Em um artigo que escreveu com a Rosana Rapizo, descrevem essa experiência de três anos e toda a vivência do processo reflexivo na constituição da equipe e na constituição da própria formação em si. Paralelamente, um ano depois de terem iniciado a formação em Macaé, foram convidados a participar de uma formação em Campinas, outro momento muito importante para o exercício da coerência da metodologia e para a interação.
Além dos quatro fundadores, estiveram envolvidas nesses processos Rosana Rapizo e Eloisa Rosas, a Lita, e também já se havia constituído uma equipe mista: eles davam aulas no ITF e Rosana e Lita participavam dos cursos do Noos, que não dava formação em terapia familiar no Rio de Janeiro, pois esse era o trato com o ITF. Quando o ITF fechou, em 2004, Rosana e Lita abriram o Multiversa, dando continuidade aos cursos de formação de terapeutas familiares. Ainda durante o Multiversa, a formação veio para o Noos, ficando inicialmente Noos-Multiversa e, desde 2010, com o término do Multiversa, só Noos.
Perguntados sobre qual a missão e como cabem todas essas atividades dentro do Noos, Carlos menciona a missão formal de disseminação da visão sistêmica como a principal motivação inicial que gerou as publicações, os eventos e os cursos. Com o tempo, foram ganhando relevância os conflitos relacionais, principalmente depois de iniciado o trabalho com o tema da violência. Hoje, a missão do Noos é de contribuir para a promoção da saúde das relações familiares e comunitárias da população brasileira, através da difusão de práticas sociais sistêmicas a partir dos resultados obtidos em seu centro de ensino, pesquisa e atendimento. A motivação é de encontrar metodologias que estejam alinhadas com os valores de participação, colaboração, co-construção, cooperação; encontrar metodologias que atendam esses valores e que ajudem as pessoas a dissolverem seus conflitos. E fazer com que essas metodologias fiquem ao alcance da população, sendo integradas nas políticas públicas. Um exemplo é o trabalho com os homens autores de violência contra a mulher. Esse trabalho teve influência na formulação da Lei Maria da Penha. Além do Noos, algumas feministas já tinham essa visão sobre a importância de engajar os homens no movimento pelo fim da violência contra as mulheres, mas o Noos foi pioneiro no Brasil em propor o trabalho com homens envolvidos em situação de violência em grupos reflexivos de gênero.
Jorge considera que os relatos dos próprios usuários constituem o reconhecimento da qualidade do serviço prestado. Acredita que os relatos positivos correspondem aos princípios construcionistas, sistêmicos, que falam do respeito pela construção da realidade do outro, do acolhimento, da inclusão, de uma postura colaborativa, de um não julgamento, de um interesse e uma busca pelo entendimento, pelo diálogo.
Um dado importante é que, no momento da entrevista, o número de pessoas trabalhando voluntariamente no Noos era de cerca de trinta e cinco pessoas com formações variadas, com especialização, que passaram pela formação em terapia de família, terapia comunitária, ou algum outro curso no Noos, e ficaram ligadas à instituição.
Perguntados sobre o lugar do construcionismo social na instituição, apontam para a fundamentação que é referência para as práticas, para a condução dos cursos e até mesmo para dar sentido à existência como uma organização da sociedade civil, e observam que o desafio de levar essa perspectiva para a gestão da instituição não tem sido fácil. O construcionismo é muito bem recebido no Noos, está incorporado, nomeou muita coisa que já era praticada, mas há o cuidado de não transformá-lo na verdade, mas em uma fundamentação por enquanto útil'. Há o desejo de que seja mantida uma visão crítica, ou seja, o construcionismo é útil, ele é coerente com o que os integrantes do Noos pensam, mas estes não estão a serviço do construcionismo, este é que tem que servi-los em seu trabalho.”
A entrevista caminhando para o final inclui uma pergunta sobre futuro, respondida por Carlos, que relata a abertura da filial do Noos em São Paulo, com Helena Maffei Cruz à frente. E acrescenta: “É uma ousadia, mas o aceitar desafios faz parte do nosso estilo! O que quero para o Noos é que ele sobreviva a mim, a nós. Primeiro que sobreviva, depois que ele sobreviva a nós”. Jorge destaca a importância de levarem ideias construcionistas, sistêmicas, aos jovens, aproximando-os do Noos. Declara a crença dos gestores na riqueza e na importância dessa troca com os jovens, com sua curiosidade, seu entusiasmo, sua diferença. Novos olhares, novas ideias, quem sabe, novos projetos?
Respondendo à pergunta sobre o que motiva esse interesse nos jovens, Carlos fala da percepção de que estão envelhecendo e o Noos não está se renovando. Como renovar a instituição, como preparar uma sucessão, como dar continuidade à renovação de lideranças? É preciso atingir os jovens. os jovens que vão estagiar ou trabalhar no Noos ficam entusiasmados, então, é preciso contribuir para a formação dessas pessoas que eles possam contribuir para dar continuidade aos projetos.
Diz um ditado popular que “quando uma porta se fecha, há sempre uma janela que se abre.” A entrevista foi feita quando o Noos São Paulo iniciava suas atividades. Três anos depois, apesar dos esforços do Carlos, gestor dede o início até então, não foi possível a renovação da gestão e o Noos encerrou suas atividades no Rio, passando a filial São Paulo a ser a sede do Instituto.
Iniciamos nossas atividades com um grupo de voluntárias atendendo famílias em terapia. Outras atividades foram sendo instaladas e são apresentadas neste site.
E a história continua ...